Imagine entrar em uma fábrica e sentir o ambiente pulsando ao som de máquinas, prensas e martelos hidráulicos. Esse cenário é comum em muitos setores industriais. Porém, por trás desse ruído constante — muitas vezes normalizado — esconde-se um inimigo silencioso, progressivo e irreversível: a perda auditiva ocupacional.
O ruído está entre os principais causadores de doenças do trabalho no Brasil e no mundo. Mais do que um incômodo sonoro, ele é um agente físico que impacta diretamente a saúde e o bem-estar dos trabalhadores, comprometendo a capacidade auditiva, aumentando o estresse e elevando riscos de acidentes. A boa notícia é que ele pode — e deve — ser controlado. Mas, para isso, precisamos ir além da simples entrega de protetores auriculares.
Neste artigo, trago reflexões e aprendizados práticos extraídos da minha recente pesquisa técnica, realizada em uma fábrica de parafusos em São Paulo, e que teve como objetivo avaliar os níveis de exposição ao ruído ocupacional e propor soluções viáveis e eficazes para enfrentá-lo. O estudo foi estruturado conforme as diretrizes da norma regulamentadora nº 1 (NR-1) e da Norma de Higiene Ocupacional NHO-01 da Fundacentro, respeitando todos os critérios exigidos pela legislação brasileira.
Ruído é todo som indesejado que pode causar desconforto, interferência na comunicação ou, em níveis mais altos, danos à saúde. No ambiente industrial, ele surge da operação de máquinas, equipamentos pneumáticos, compressores, prensas, entre outros. Em um primeiro momento, seus efeitos parecem passageiros: zumbido, cansaço, dificuldade de concentração. Porém, com o tempo, ele compromete de forma permanente o sistema auditivo, levando à Perda Auditiva Induzida por Ruído (PAIR).
Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), a PAIR é uma das principais causas de surdez no mundo. No Brasil, o problema é agravado pelo desconhecimento técnico e pela falsa sensação de segurança proporcionada pelo uso isolado dos Equipamentos de Proteção Individual (EPIs). Sem um controle eficiente do ambiente, os protetores auriculares tornam-se paliativos — e não soluções definitivas.
A pesquisa foi realizada na unidade fabril de uma empresa fabricante de parafusos, localizada na cidade de São Paulo. A metodologia seguiu os critérios da NHO-01, utilizando medidores integradores portáteis e dosímetros de uso pessoal. As medições abrangeram diferentes pontos do processo produtivo, considerando também grupos de exposição similar — ou seja, trabalhadores que compartilham as mesmas tarefas, máquinas e horários, em outras palavras, que estão expostos a situações similares de trabalho e, por isso, a perigos e riscos similares.
Os resultados revelaram níveis de pressão sonora superiores a 90 dB(A) em diversos postos de trabalho. Para contextualizar: pela NR-15, o tempo máximo permitido para exposição a 90 dB(A) é de apenas 4 horas. Quando a jornada excede esse limite — e ela costuma ser de 8 horas — a dose diária de exposição ultrapassa os 100%, o que representa risco real à saúde auditiva dos colaboradores.
A legislação doméstica oferece um conjunto importante de normas para proteção contra o ruído ocupacional. Entre os principais instrumentos legais, estão:
Embora esses regulamentos tenham importância histórica, muitos deles foram criados há décadas e não acompanharam plenamente os avanços científicos e tecnológicos. Isso gera um descompasso com as diretrizes internacionais — como as da ACGIH e da OSHA — especialmente no que diz respeito aos limites de tolerância, métodos de medição e ações preventivas. Atualizá-los é essencial para garantir uma proteção efetiva e alinhada com os padrões globais de saúde ocupacional.
A avaliação da exposição ao ruído não pode ser feita com base apenas em medições pontuais ou impressões subjetivas. A forma mais adequada e amplamente recomendada é a dosimetria ocupacional, que mede de forma contínua a dose de ruído recebida pelo trabalhador ao longo da jornada.
O dosímetro é um dispositivo fixado ao corpo do trabalhador que registra níveis de pressão sonora em tempo real. Esses dados permitem calcular com precisão a dose diária de exposição e o nível de exposição normalizado (NEN), parâmetros fundamentais para identificar riscos e propor intervenções técnicas. A dosimetria, portanto, não é um diferencial: é a metodologia-padrão recomendada pelas normas técnicas e sanitárias nacionais e internacionais.
A legislação é clara ao estabelecer a hierarquia das medidas de controle. Ou seja, os EPIs devem ser adotados apenas quando as medidas coletivas não forem possíveis ou suficientes. São considerados a última linha de defesa.
Contudo, na prática, é comum que o EPI seja tratado como solução principal. Isso é um erro. Além de ser menos eficaz que as medidas de controle ambiental, o uso inadequado ou mal ajustado do protetor auricular transmite uma falsa sensação de segurança ao trabalhador. Ele acredita estar protegido, mas continua exposto aos danos irreversíveis do ruído excessivo.
Protetores mal colocados, vencidos, sujos ou de modelo inadequado à anatomia do trabalhador têm eficácia reduzida — ou praticamente nula. Portanto, a simples entrega do EPI não garante proteção. É preciso garantir treinamento, monitoramento, adaptação individual e renovação periódica, como parte de um Programa de Conservação Auditiva bem estruturado.
Os dados obtidos no estudo reforçam que, mesmo em empresas de médio porte com limitações orçamentárias, é possível implementar estratégias eficazes de controle do ruído, tais como:
A saúde auditiva não pode ser negligenciada. O ruído é invisível, mas seus efeitos são profundos, irreversíveis e silenciosos. Um ambiente de trabalho seguro começa pela identificação correta dos riscos, segue com ações planejadas e termina com trabalhadores protegidos — física e psicologicamente.
Empresas que adotam uma postura proativa na gestão do ruído demonstram compromisso com a saúde, a produtividade e a conformidade legal. E o mais importante: cuidam do bem mais valioso de qualquer organização — as pessoas.
Fernando Sato, engenheiro de produção com especializações em gestão empresarial, engenharia de segurança do trabalho, higiene ocupacional e gestão ambiental. Auditor líder nas normas ISO 9001, ISO 14001, ISO 45001, ISO 22000 e auditor interno SASSMAQ. Mais de 15 anos de experiência, tendo feito trabalhos de consultoria e auditorias em grandes empresas como Unilever, Avon, Eli Lilly, SMP, Metagal, ABL Antibióticos, Waters Brasil, entre outras.